terça-feira, 8 de novembro de 2011

Capítulo 1 – Lully Flor, como eu a conheci! - Capítulo 2 – O primeiro encontro

Capítulo 1 – Lully Flor, como eu a conheci

A história que começo a contar aqui aconteceu há muitos anos, e se alguém um dia dissesse que eu e Lully Flôr teríamos nossos caminhos cruzados tantas vezes, eu diria que era pura viagem. Lully era uma incógnita, um mistério e talvez por isso tenha me fascinado tão rapidamente. Uma menina de sorriso fácil e um tanto quanto enigmático, uma personalidade difícil de desvendar. Como era de se esperar, nos conhecemos totalmente por acaso, como boa parte das pessoas importantes em nossa vida.

Eu era um jovem de vinte e poucos anos, meio sem saber ao certo o que queria da vida. Sempre fui um cara idealista e pouco preocupado em seguir as tendências e modismos dos meus contemporâneos. Criado por uma família oriunda do subúrbio carioca que com muito esforço e dedicação conseguiram se estabilizar na castigada classe média brasileira, de educação um tanto quanto rígida na infância e muito democrática a partir da segunda metade da adolescência. Já havia batido cabeça em caminhos profissionais, mas nenhum tinha me feito realmente realizado. Buscava novos ares e novos desafios. Após alguns relacionamentos não muito bem sucedidos, estava com o coração de férias sem remuneração e sem data para terminar, trabalhando como assessor de um advogado de segunda linha e de caráter duvidoso, fazia alguns bicos por fora, para ajudar a pagar minhas aventuras pelas noites cariocas. Num desses dias conheci Lully.

Lully era recepcionista de uma repartição pública no centro da cidade e assim nossos caminhos se cruzaram. Ia eu sempre a essa repartição resolver problemas para meu Double de patrão. Não tínhamos vínculo empregatício e minha remuneração dependia de minha, digamos assim, produtividade. Minha missão era desenrolar umas ações na tal repartição. Como em quase toda repartição pública, resolver problemas é quase um martírio. Pouco importa se você tem ou não razão, se está certo ou errado e sim como você aprende a andar no lugar ou das pessoas que você conhece. Eu ia lá semanalmente tentando descobrir esses caminhos e sempre começava minha peregrinação por Lully. De certa forma ela era minha primeira barreira, a recepção. De tanto ir lá, ela já me conhecia pelo nome e como ela era das poucas pessoas que me sorriam. Comecei a puxar mais assuntos do que o costumeiro bom dia preciso falar com Dr Fulano. Vendo que eu não evoluía muito, Lully resolveu me perguntar o que eu precisava resolver, compadecida de me ver chegar lá sempre de terno no verão escaldante do Rio de Janeiro. Contei a ela um resumo de meu desafio. Lully me sorriu e disse: "Volte aqui amanhã menino que eu vou te apresentar ao Dr. Luiz, ele vai ajudá-lo". Trocamos telefone para que eu soubesse a hora certa e voltei para minha casa. Bati gazeta no escritório essa tarde.

No outro dia pela manhã, liguei para Lully, lá pelas dez da manhã, quase madrugada para o tal órgão e ela com voz sorridente falou: "Venha aqui as 14h, é a hora boa de falar com Dr. Luiz pois ele está chegando e chega de bom humor".

Lully me anunciou ao Dr. Luiz e disse: "Suba lá, disse a ele que você é meu primo e ele vai recebê-lo". Entrei na sala meio desconfiado e lá estava ele; um senhor de uns 58 ou 60 anos, barriga anunciando prosperidade, careca do tipo Lima Duarte, suspensórios, um charuto - naquela época fumar no escritório era coisa corriqueira, os fumantes ainda não eram o mal do século -  e uma flâmula do Améria FC, carismático time carioca, de glórias longínquas e escassas, mas que ainda cultivava saudosistas e apaixonados torcedores. Dr. Luiz deu uma baforada no charuto e me ordenou que entrasse na sala. De pronto falou: "És o primo da Lully? Se és primo dela é boa gente, sente-se".

Antes de entrar em qualquer assunto de trabalho, olhei fixamente para a flâmula do América. Já havia preparado minha estratégia para conquistar o coração do Dr. Luiz. Eu havia jogado futebol em um campeonato de domingueiros com Amaro, genial cabeça de área do América na década de 60. Eu, nascido na década de 70, só sabia que Amaro era craque e campeão pelo América porque joguei com ele. Quando me viu olhando a flâmula, ele logo perguntou: "Gosta de futebol garoto?" E eu, na 'desfaçatez' comum dos advogados e estrategistas respondi: "Sou americano de coração, torcia pelo Vasco, mas quando tinha 16 anos, joguei um torneio com Amaro. Teci mil elogios ao craque, sua história, sua categoria e suas vitórias no América. Desde então, Dr. Luiz, me tornei um apaixonado torcedor do 'diabo' (Mascote do Alvi Rubro Tijucano). Frequento o clube e assisto aos jogos! Citei mais alguns jogadores do América, o que para mim, um apaixonado por futebol e tijucano não foi difícil. 

Dr. Luiz mal se lembrava que eu era “primo” de Lully. Ficou comigo na sala duas horas contando histórias de futebol, fumando charuto e até cafezinho para nós ele mandou que sua secretária providenciasse. Ao final do papo ele chamou a secretária e disse: "Dona Aurora, esse é meu afilhado Herculano. Ele tem passe livre na repartição, e quero que a senhora acompanhe pessoalmente os processos que ele precisa resolver". De falso primo da recepcionista, virei afilhado querido do chefe. Bendito América, bendito Amaro! Ainda saí assobiando o hino:

...Campeões de 13, 16 e 22 lá lá lá...
temos muitas glórias surgirão outras depois...” 

Hino do saudoso Lamatine Babo, também Torcedor ferrenho do América. Eu, Lamartine, Dr. Luiz e mais uns seis ou sete gatos pingados..

Depois desse dia, pedi a meu patrão que me desse todos os processos do referido órgão. Ele e meus colegas acharam que eu estava louco, lá era osso duro, ninguém entendia porque eu queria pegar processos de lá e nem porque ouvia todos os jogos do América com especial atenção! Ganhei assim, fama de meio "lelé da cuca", alguns pontos com o chefe e também reforço nas receitas. 

Comecei então a encontrar Lully várias vezes por semana. Agora além de telefone, trocamos também o e-mail e já sabíamos mais da vida um do outro. Nossa diferença de idade beirava dez anos, mas tínhamos sempre muitos assuntos. Um belo dia, quando fui resolver uns assuntos lá no fim da tarde, ela me perguntou se eu tinha pressa, respondi que não e ela falou: "Quer tomar um chopp comigo?" Após hesitar por segundos pela surpresa do convite, respondi que sim e que a esperaria no bar da esquina. 

Começava ali minha história com Lully Flor.




Capítulo 2 – O primeiro encontro

Cheguei ao bar Ao Vivo, ao lado do Menezes Côrtes e me sentei numa mesinha do lado de fora. Wagner, meu conhecido garçom chegou e me cumprimentou com seu cordial sorriso. Eu era figurinha fácil lá e ele logo chegou com minha garrafa de uísque. Época de vacas magras, tinha eu lá sempre uma garrafa de Teachers, honesto uísque engarrafado no Brasil, me esperando. Amizade com garçom representa duas coisas: sinônimo de ser bom cliente e de tratamento especial. Por isso estava sempre lá. Conhecia os garçons o gerente e até boa parte dos habitues como eu.

Copo longo, muito gelo e uma água com gás, essa era a minha pedida. Wagner já trazia mesmo sem que eu pedisse. Girei a bebida e o gelo com o dedo mesmo (hábito feio, eu sei), olhei para o gelo, a cor dourada do uísque e o suor do copo, coloquei o fone para ouvir uma música enquanto esperava por Lully. Meu gosto musical pouco combinava com as paradas de sucesso da moda. No meu 'diskman' (jovens, por favor consultar o Google), um CD tocava uma das minhas músicas preferidas, Aquarela, de Toquinho. Eu já me distraia com meu verso preferido: 


...e o futuro é uma astronave, 
que tentamos pilotar, 
não tem tempo, nem piedade, 
nem tem hora de chegar...
sem pedir licença, muda a nossa vida 
e depois convida a rir ou chorar...

Quando Lully chegou, mal sabia eu que estava entrando na tal astronave. Ela sorriu... àquele sorriso encantador, jogou os cabelos, castanhos, longos e lisos como de uma índia e sentou-se. Ofereci uísque, ela agradeceu, e preferiu uma caipivodka de maracujá, com açúcar e pouco gelo. Um brinde e muita conversa. 


Lully tinha um jeito misterioso. Horas sorria e falava como se fosse uma menina, em outras, falava e sorria como se fosse uma felina, rondando a presa (no caso, eu). Ela me contou sobre sua vida. Entrara na repartição como terceirizada e numa das brechas da legislação foi incorporada ao quadro de pessoal. Morava na Cruzada São Sebastião, no Jardim de Alah. Era filha única, não tinha mãe, a mesma fugiu com um vendedor de picolé Dragão Chinês, febre nos anos 80 e 90 (jovens ao Google novamente), quando ela tinha apenas 2 anos. Seu pai, Sr Everardo, vendia limonada e Mate Leão na praia, nos famosos galões de alumínio. No inverno ele se virava como 'faz tudo' no bar Tio Sam, ali na Dias Ferreira. Chico, o português boa praça, havia se compadecido de Everaldo quando o mesmo foi abandonado pela patroa, deu-lhe o ombro, umas broncas e o emprego de entregador, lavador, vigia. O Leblon é assim, uma cidade do interior dentro do Rio de Janeiro.

Havia estudado nos colégios públicos do bairro e quando terminou o segundo grau, uma coordenadora da escola arrumou-lhe o emprego por admirar o esforço da menina e o fato de ser órfã de mãe. Eu já estava bem encantado com a forma delicada com que Lully me contava suas histórias, quando ela deu a notícia ruim da noite. Ela era noiva! Um namoro que já durava 6 anos. Benevides, seu noivo, era motorista da linha 474, Jardim de Alah – Jacaré e haviam se conhecido ali, no ponto final quando ela ainda era mocinha lá pelos seus 17 anos.

Tentei não demonstrar minha cruel decepção ao ver que a bela 'mocinha sorriso' estava prestes a se casar mal. "Nascer ferrado é destino, mas casar mal, é burrice". Logo me veio a cabeça a frase muitas vezes repetidas por minha tia Tutuca. Aquela Tia solteirona de manequim 58, que sempre repetia para as sobrinhas, "nasci pobre e não casei porque casar com pobre é burrice, prefiro ficar solteirona!". De tanto ela gritar, Deus ouviu e atendeu. Tia Tutuca morreu donzela aos 69 anos, ironias do destino a parte, ficou o ensinamento.

Tomei mais uma dose, me fiz de interessado e perguntei: "casa-se quando?" Ela deu novamente aquele sorriso enigmático e falou: "um dia, com ele ou não, um dia me caso". Meu coração bateu até mais forte. Quando vi, já tínhamos ficado ali mais de três horas de papo. Pedimos a conta e eu generoso e cavalheiro paguei e ofereci uma carona. Naquela época não existia Lei Seca, nem Bafômetro. Levei então Lully até o Leblon. No carro ela contou piadas, cantou algumas músicas acompanhando o rádio, cantou com sorriso especial quando tocou: “...quis evitar seus olhos mas não pude reagir...” e ao chegar em casa se despediu dizendo: "Agora temos que sair novamente para você me contar da sua vida, só eu falei de mim seu feio!


Me deu dois beijinhos, me chamou de cheiroso e saiu do carro com mais um sorriso.

3 comentários:

Angelica disse...

Querido amigo, como sempre nos prendendo em suas histórias. Parabéns! Mais uma vez serei uma leitora assídua :)

Ana Claudia disse...

Gostei, vou ler todos os
outros!

Lennon Pereira disse...

Muito obrigado An aClaudia, espero sinceramente que goste! abraços