quarta-feira, 21 de março de 2012

No Divã da Esther – Capítulo 1 Milene e o Amor.


A ideia de começar a contar casos vividos no meu divã surgiu depois que tratei o Sr. Herculano Marins. Um rapaz boa praça, que chegou aqui com meio caminho andado. Um paciente que me procurou porque queria ajuda para se encontrar. Para querer se encontrar, é fundamental se saber perdido, primeiro requisito para que um tratamento com analista possa surtir efeito.
Canso de receber pacientes que chegam aqui com os mais variados motivos:um amigo indicou,  a mãe disse que era bom, a amiga melhorou muito depois que me conheceu, a prima casou, o amigo arrumou bom emprego, vi na novela e resolvi experimentar, e por aí vai. Uma variedade tão grande que se eu fosse relatar, gastaria uns dois ou três capítulos só listando.
Herculano é um orgulho para mim como profissional. Chegou aqui virgem, nunca havia feito analise. Abriu seu coração, foi transparente. Ele não sabe, mas a primeira sessão, eu não conto como tratamento. Na primeira, eu que vejo se posso e quero ou não tratar o paciente. Herculano eu topei de cara. Se sabia perdido, queria ajuda e assim foi. Tivemos sessões memoráveis, curiosas e um super resultado. O rapaz se encontrou na vida, e em consequência no amor, na família no trabalho e no prazer de viver.
Vou começar hoje contando um caso que aconteceu há alguns anos no meu consultório, uma moça de vinte e oito anos que me procurou dizendo que não conseguia se apaixonar, vou usar o nome fictício de Milene, para preservar a identidade da paciente.
Milene era a filha mais nova de um casal de médicos, era dois anos mais nova que o irmão, um bem sucedido médico, que seguiu a profissão dos pais. Formou se cirurgião, conquistou respeito no meio profissional, casou com uma bela moça e teve dois filhos, gêmeos e lindos. 
Milene contava que vivia muito bem, morando na casa dos pais, formada em direito, trabalhava como assistente em um razoável escritório de advocacia, sem muita expressão, sem muita cobrança e também sem muitos desafios. Milene dizia que tinha uma vida maravilhosa, que era muito feliz com sua vida, mas que tinha uma enorme dificuldade em viver um grande amor.
Milene era a típica paciente difícil de tratar. Me procurou por sugestão de uma amiga e já chegou aqui dizendo que não tinha problemas. Não se apaixonara por ninguém até hoje porque não lhe fazia falta. Segundo ela, era um absurdo que a sociedade  lhe cobrasse ser solteira. Milene era a típica Pollyana. Vivia no jogo do contente, sem se dar conta de tal fato. Era cercada de amigos e eventos, vivia afirmando que a vida era muito simples. Para ela as pessoas que se diziam infelizes era pessoas que inventavam problemas. Para milene, problemas eram na sua grande maioria invenções de pessoas complicadas.
Nada mais doentio do que acreditar que a vida é um mar de rosas. Viver é correr riscos, é ficar triste e feliz e saber respeitar cada momento. Sem tristeza não pode haver alegria, assim como é impossível se enxergar a luz se não houver a escuridão.
Deixei Milene se enganar e fingir que me enganava por algumas sessões. A moça sentou aqui umas quatro ou cinco vezes apenas para falar como ela era feliz e como os amigos e amigas eram tolos por terem problemas. Ela vangloriou-se por várias vezes se mostrando superior aos fracos que por não terem o que fazer, inventavam problemas idiotas e tolos.
Até que um dia resolvi cutucar a moça. Pedi a ela que relatasse em poucas palavras como eram seus pais e seu irmão e ela e o que cada um representava no seio familiar. Ela começou superficialmente falando do casal, da convivência do dia a dia até que chegou nas profissões de cada um. Sem perceber, Milene deixou escapar o primeiro e grande problema que havia dentro dela e que não queria enxergar. Ao entrar na personalidade do irmão, ela cometeu o deslize que de a abertura para o início real de seu tratamento. Ela começou a falar do irmão e eu interrompi, perguntando o que ele representava para os pais. Milene respondeu tão a vontade que se traiu e deixou cair a cortina que escondia um de seus traumas que tanto incomodava e teimava em esconder:
“Meu irmão é cirurgião, assim como meu pai. Um grande cirurgião, que leva o nome da família e é reconhecido no meio como sucessor de meu pai. Para ele ter sucesso e respeito, precisou ser muito bom no que faz, pois não queria ser conhecido como o filho do DR. X. Meu irmão é o orgulho da família. Bom profissional, bom marido, bom pai. Tudo que meus pais esperavam dele.” 
Interrompi Milene nesse momento, e perguntei: “E para você o que ele é? “
“um grande amigo”, respondeu Milene sem pestanejar. Não satisfeita cutuquei provocante: “Só isso? Não é um parâmetro? Um espelho? Ou uma barreira a transpor? Ele não é tudo o que você queria ser”? 
Milene baixou a cabeça e chorou. Chorou o choro de quem caiu na real, que viu seu mundo de conto de fadas desabar. Não precisou falar mais nada. Seu irmão Beto (nome fictício) era um fantasma inocente, que nunca fez nada para assombrá-la propositalmente. Simplesmente Beto e Milene eram diferentes. Beto escolheu seus caminhos e seguiu de forma determinada. Pelo que Milene contava, Beto seria o melhor advogado, o melhor engenheiro, o melhor frentista ou o melhor violonista. Era a personalidade do rapaz. Tem gente que é assim, escolhe uma coisa e vai lá ser o melhor, ou um dos melhores. O Fato de Milene não ser como Beto, e ninguém é obrigado a ser como ninguém, acabava oprimindo Milene. Sua forma de reagir foi se enclausurando num mundinho sem riscos e sem ambições. O medo da fictícia concorrência e comparação que poderia ocorrer, impediam Milene de arriscar, de tentar, de buscar.
Na verdade Milene não tinha dificuldades em se apaixonar. Milene tinha medo da comparação, da competição que dentro dela, seria travada na eterna comparação com seu irmão Beto.
Milene não alçava maiores voos no trabalho, para não ser comparada ao irmão. Não se envolvia emocionalmente para não correr o risco de formar uma família não tão de “porta retratos” como a de Beto.
Milene chorou os últimos vinte minutos da consulta. Voltou muitas vezes mais ao meu divã, até ter alta. Chorou, assumiu seus medos, suas incertezas e inseguranças e se assumiu como ser humano como todos nós. É do ser humano ter medo, ter duvidas ter incertezas e fantasmas. Não é certo é se esconder e fingir que isso não existe. Quando admitimos um problema damos o primeiro passo para resolve-lo.
Cheguei a ter uma conversa com Milene e seus pais no consultório. Foi importante para ela abrir o jogo na frente dos seus pais, assumir seus medos e ouvir deles que isso nunca aconteceu. Seus pais choraram também e declararam seu amor sincero pela filha, dizendo a ela que a amariam sempre da mesma forma que ao irmão, e que sempre teriam por ela admiração, e respeito pelas suas escolhas. Declararam que estariam ao seu lado sempre, aplaudindo quando acertasse e dando apoio quando um projeto, pessoal ou profissional desse errado.
Tenho muito orgulho desse tratamento. A família toda cresceu e se tornou mais feliz e mais unida.
Milene hoje  tem seu próprio escritório. Especializou-se em direito ambiental, está batalhando por seu espaço, mas é motivada e feliz. Namora um rapaz bacana, Também advogado, que tem um emprego no TRT. Estão planejando casamento. Milene é apaixonada pelo noivo, pelo irmão e pelos pais, um amor sem cobranças, sem comparações e sem medos, como devem ser os amores saudáveis.
Semana passada recebi o convite para o casamento. Não costumo abrir exceções, mas dessa vez irei com muito orgulho e prazer, me sinto madrinha da nova Milene, e estarei lá desejando a ela muitas felicidades, tristezas, erros, acertos, medos e certezas em toda sua vida.
Até a próxima. Um beijo para vocês.
Se quiserem contar algum caso ou história, terei prazer em publicar e comentar, basta mandar email  para o meu editor lennon.pereira@lm7solutions.com.br.